quinta-feira, 18 de abril de 2013

Uma pitada de samba e um bocado de histórias

Episódio de hoje: 

O samba e o futebol - a ginga das rodas e os dribles nos campos

As perseguições aos negros, aos mestiços e aos mulatos, não eram restritas somente no meio musical e social, o preconceito se estendia também nos esportes, como é relatado no livro O Negro no futebol brasileiro, de Mário Filho. A obra conta que no início, o esporte bretão era praticado somente pela elite branca e os negros eram proibidos de atuarem nas equipes.

Mario Filho
  

Mario Filho relata que negros e mulatos povoavam os locais de concentração da elite brasileira e, aos poucos, foram conquistando espaço nos grandes clubes, entretanto, não eram igualmente tratados, pois não podiam encostar-se aos brancos durante as partidas, além de receberem a culpa em caso de derrota e serem severamente punidos. Assim nascia a habilidade incomum que conquistaria o mundo. Os negros, mulatos e mestiços levavam para o futebol de rua e de várzea, a ginga dos terreiros de samba, os movimentos de capoeira, e reproduziam nos campos para evitar os contatos com os brancos. As rígidas regras direcionadas aos negros, mestiços e mulatos deram origem aos dribles que transformariam o Brasil no País do Futebol.

Foi no Campeonato Sul-Americano de 1919 que nasceu o primeiro herói do futebol brasileiro, o mulato Friedenreich1, filho de um alemão com uma negra. Ele se tornou herói ao marcar o gol do título brasileiro contra os uruguaios, que o apelidaram de “El Tigre”, pela sua valentia demonstrada em campo. Mas foi somente em 1923, que um clube com negros no time foi campeão, abrindo as portas para que o futebol se tornasse multirracial. Na ocasião, o Vasco da Gama foi campeão carioca com um time formado, em sua maioria, por negros, mulatos e mestiços pobres e analfabetos. Em 1926 seria a vez do São Cristóvão repetir o feito do Vasco e sagrou-se campeão com um time miscigenado.

Friedenreich

Os heróis com a cara do povo brasileiro foram surgindo, popularizando o futebol e encantando o mundo com a forma envolvente de jogar. O negro Leônidas da Silva, o inventor da bicicleta, também conhecido como Diamante Negro, se tornou o maior ídolo do futebol dos anos de 1930 e 40, atuando por grandes clubes como o Flamengo, São Paulo e Bonsucesso.


Leônidas da Silva


A forma original de jogar futebol dos negros, mestiços e mulatos brasileiros, cheios de ginga e de malícia, rendeu um artigo jornalístico elaborado por Gilberto Freyre, chamado “Foot-ball mulato”. Feito após a boa participação do Brasil na Copa do Mundo de 1938, realizada na França.



Um repórter me perguntou anteontem, o que eu achava das admiráveis performances brasileiras nos campos de Strasburgo e Bordeaux.

Respondi ao repórter que uma das condições de nosso triunfo, este ano, me parecia á coragem, que afinal tivéramos completa, de mandar à Europa um time fortemente afro-brasileiro. Brancos, alguns, é certo; mas grande número, pretalhões bem brasileiros e mulatos ainda mais brasileiros.

O nosso estilo de jogar futebol me parece contrastar com o dos europeus por um conjunto de qualidades de surpresa, de manha, de astúcia, de ligeireza e ao mesmo tempo de espontaneidade individual em que se exprime o mesmo mulatismo de Nilo Peçanha, que foi até hoje a melhor afirmação na arte política.

Os nossos passes, os nossos pitu’s, os nossos despistamentos, os nossos floreios com a bola, há alguma coisa de dança ou de capoeiragem que marca o estilo brasileiro de jogar futebol, que arredonda e adoça o jogo inventado pelos ingleses e por outros europeus jogado tão angulosamente, tudo isso parece exprimir de modo interessantíssimo para psicólogos e sociólogos o mulatismo flamboyant e ao mesmo tempo o malandro que está hoje em tudo que é afirmação verdadeira do Brasil. (Diário de Pernambuco, 17 de junho de 1938).



Os negros, os mulatos e os mestiços passaram a ser figuras normais no futebol e, até mesmo, idolatradas pelo povo e pela elite, que parecia se esquecer do preconceito que tinham de suas raças. Aquele preconceito de outrora não existia mais no mundo futebolístico, pelo menos não declarados. Com a Segunda Guerra Mundial, houve anos sem carnavais, mas os sambas e marchas eram produzidos com críticas à Hitler e ao Nazismo. Nesta década o samba já estava consolidado (entrarei neste ponto nos capítulos mais à frente). No futebol, a Copa do Mundo foi interrompida em 1938, quando o Brasil teve uma bela participação.

No ano de 1950, a Copa do Mundo foi realizada no Brasil, e a seleção, bem miscigenada venceu o México, empatou com a Suíça e venceu a Iugoslávia pela primeira fase. Na segunda fase venceu a Suécia e venceu a Espanha, jogo marcado pelo fato de 200 mil pessoas cantarem a marchinha Touradas em Madri, de João de Barro.
Touradas em Madri, de João de Barro, na voz de Carmen Miranda

Na final desta Copa, o Brasil foi derrotado, e novamente, a culpa recaiu em cima dos três negros do time, o goleiro Barbosa, Bigode e Juvenal. A derrota para o Uruguai trouxe de volta o racismo adormecido durante anos. Mesmo sem acusá-los por causa da raça, o povo brasileiro escolhera seus culpados, assim como o Jornal dos Sports publicou em suas páginas de 22/07/1950.



Para vencer o Uruguai, foi isto que o match da decisão mostrou, bastaria que Bigode não falhasse duas vezes. Bastaria inclusive, que Bigode só falhasse num dos goals ou que Barbosa, mesmo Bigode falhando, não falhasse num dos goals.

Bigode e Barbosa não falharam por falta de fibra. Falharam porque sentiram demasiadamente a carga da responsabilidade de dar ao Brasil o título de campeão do mundo. (Jornal dos Sports, 22/07/1950: p. 5).



A Copa de 1958 revelou para o mundo o negro que se tornaria Rei. O time com Zagallo, Bellini, Nilton Santos e Vavá, contava também com os negros Pelé e Didi e o mulato Garrincha. Estes nomes deram outra cara ao futebol brasileiro. O negro havia se consolidado no futebol nacional e não havia mais nada a se provar.

Seleção brasileira campeã da Copa do Mundo de 1958.



1 Pixinguinha e Benedito Lacerda compuseram uma música chamada Um a zero, em homenagem ao gol marcado por Friedenreich no Sul-Americano de 1919. Foi a primeira obra que envolvia música e futebol.

Veja o episódio 1 em Os primeiros passos do Samba

Veja o episódio 2 em Tia Ciata

Veja o episódio 3 em O negro, o mestiço e o mulato

 



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